Selecção e tradução por Júlio Marques Mota
A chacina sobre Charlie Hebdo no contexto da crise europeia.
6. Charlie Hebdo: Eu vou à marcha, mas não tentem levar-me à certa. União nacional em redor das vítimas, sim, hipocrisias quanto aos culpados, não.
Élisabeth Lévy, Charlie Hebdo : Je marcherai mais n’essayez pas de me faire marcher L’union nationale autour des victimes oui, l’hypocrisie sur les coupables non.
Revista Le Causeur, 11 de Janeiro de 2015
*Photo : EREZ LICHTFELD/SIPA. 00701311_000028.
Bom, irei “marchar contra o terror”. Primeiro, quando o meu presidente e o meu primeiro ministro me convidam, é difícil recusar. E seguidamente, tenho um coração também. Não importa, estou contente de ter um álibi – o jornalismo. É necessário dizer que não se tem todos os dias a ocasião de assistir na verdade a um tal circo planetário. A Rainha da Inglaterra e o papa ainda não confirmaram, mas quanto ao resto, haverá pesos pesados da política, Cameron, Renzi e Merkel, e toda uma Europa em fila: todos Charlie, mesmo o húngaro Viktor Orban. Quanto à América, apostaria sobre Kerry e Hillary Clinton, Charlie endiabrado. Charlie evidentemente, Mahmoud Abbas e Benyamin Netanyahou, de que não se sabe se desfilarão lado a lado, o que seria certamente mais emocionante. Certamente alguns rabugentos dotados de um pouco de memória poderiam considerar que a presença do Primeiro ministro turco Ahmet Davutoglu não se impunha: não se recordam que o seu patrão, Recep Tayyip Erdogan, era um partidário obstinado da liberdade de expressão, na época das caricaturas, em 2006, ele tinha-se mostrando ser uma pessoa bem suja. E o seu governo acreditou que seria bom denunciar, ao mesmo tempo que o terrorismo, o crescimento “da islamofobia” e a xenofobia na Europa. No mesmo género, o chefe de Hezbollah, Hassan Nasrallah, teve mais classe : “Estes grupos, declarou, têm estado a insultar o profeta e os muçulmanos bem mais do que o estão a fazer aos seus inimigos (…), mais que os livros, os filmes e as caricaturas que têm insultado o profeta.”. Passemos. Lamentemos que não se tenha convidado o emir do Catar, teríamos podido enviar-lhe a factura.
Depois de tudo, Davutoglu não é, muito longe disso, o único Charlie da décima primeira hora. Em 2011, depois do incêndio das salas do semanário que publicava a sua “Charia Hebdo”, muitos os que arvoram hoje um ar aflitivo consideravam que os cartoonistas rigolos exageravam, que lançavam óleo sobre o fogo e que, o direito à sátira, certamente que deve ser salvaguardado, mas com a condição de não ofender ninguém e sobretudo não os muçulmanos. E um conjunto destes defensores obstinados da liberdade tem uma deplorável tendência a insultar os que não pensam como eles, o que, pensando bem, é uma linha contraditória. Recordemos-lhes que a sua recusa do desacordo pode matar.
Não se vai desperdiçar o ambiente por tão pouco, dado que é a união sagrada e que somos todos Charlie. Mesmo assim, isto incomoda-me, esta união da qual me expulsou um partido que representa um quinto ou um quarto dos eleitores. Parece que se pode desfilar com este senhor Davutoglu, mas não com Marine Le Pen: uma questão de valores. Sabe-se efectivamente que valores, é coisa que ela não tem. O presidente tentou recuperar a borrada de Cambadélis afirmando que todos estavam convidados, mas não se vê porque é que Marine Le Pen se iria privar do presente que lhe fazem os seus adversários. Do resto, de acordo com Claude Askolovich, que se esqueceu de nos dizer o que é que os seus “amigos salafs” pensavam dos acontecimentos, é necessário interrogar-se sobre a responsabilidade da FN. Esta é bem boa.
E é sito que é engraçado quando se é de esquerda: tem-se o direito de dizer que se faz parte do povo e que está de piquete. Em nome da tolerância: tu, sim, você não. Ideias rançosas. Em suma, o golpe da unidade nacional, é o velho truque da esquerda para designar os maldosos e mobilizar o seu campo. E os maldosos, dou-os aos milhares, são os islamfóbicos. O terrorismo islamita acaba de matar, mas os responsáveis são os que os denunciavam. Lógica. E é dado que tudo isto não tem nada a ver com qualquer religião. Enquanto se espera, a prova que o grande ajuntamento republicano começa a ter um ar de manifestação de esquerda, é que se vai concluir sob uma grande festa organizada por Jean-Michel Ribes.
À parte isto, somos todos Charlie, está escrito sobre todos os ecrãs e afixado em toda as nossas cidades, acabaremos por fazer disto psalmos a serem cantados nas igrejas. Nos meios de comunicação social, já se entrou mesmo na religião. Um amigo editor chefe de JT explica-mo e bem à vontade: até amanhã, não haverá a mais pequena voz dissonante, não haverá o mais pequeno debate. Deveremos ter direito toda a noite a um desfile de celebridades e políticos vindos para nos falar sobre o seu horror da barbárie, de todas as barbáries – não se vá estigmatizar uma crueldade particular.
Todos Charlie, por conseguinte, mas interrogo-me se estamos a falar do mesmo Charlie. Em todo caso, não se vai à mesma manifestação. Vai-se para “marchar contra o terror”, como nos convida o jornal Le Monde, embora fosse útil precisar de que terror se fala. Mas eis que também há eminentes comentadores como Plenel a desfilarem contra a Frente Nacional (sic!). Clémentine Autain, ela marchará “contra os ataques para com os muçulmanos. Contra todas as formas de racismo e de xenofobia. Contra os fascismos” (estaria ela a favor da doença?). Sejamos claros: qualquer ataque contra uma mesquita ou contra uma instituição muçulmana e, certamente, contra as pessoas, deve ser denunciado e severamente sancionado. Mas enquanto que jornalistas, polícias e judeus (es qualidades se assim se pode dizer ) acabam de serem mortos em nome do Islão, a violência contra o Islão é ela a principal ameaça?
Não importa, estou bem contente de ter um álibi. Porque, tanto quanto o confesso, sei que a unanimidade é sempre suspeita, defendo antes muita gente para o golpe “todos em conjunto”. Como muitos dos meus semelhantes, nas crises, gosto bem de estar presente, deafirmar que tudo o que nos une etc. etc. E depois estou certo que os meus concidadãos têm mais bom senso do que os seus supostos representantes e que eles têm uma vaga ideia da natureza do inimigo. Então, quero bem ser Charlie com toda a gente. Mas não com qualquer um.
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Ver o original em:
http://www.causeur.fr/manifestation-charlie-hebdo-securite-31029.html
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